terça-feira, 30 de outubro de 2012

A nova ausência

Hoje eu achei uma caneta no chão. Pensei se. Como? De onde a sorte brotou? De qual terreno infértil a sorte esferográfica surgiu? Indiferente à origem, ela surgiu. Tão ela, tão rígida nas suas linhas e delicada no sentido do risco... Qual teriam sido suas últimas palavras nas mãos do esquecido dono? Fosse meu o descuido, como derradeiras palavras eu escreveria: não fui, fiquei. Talvez um poema curto, com palavras tuas do não dizível sentimento. Enfim, achei uma caneta. Quem sabe, ainda, seja essa caneta virgem de papel. Diria que nunca tocara o papel não fosse a ausência de uma fina lâmina de tinta e uma trinca no acrílico onde se apoia o dedo anular, levando em consideração um escrever que use o dedo anular. 
Quais palavras essa caneta não disse? Quais disse? Quais não deveria ter dito? Como vetor da fala incógnita do ex-dono ela cumpriu seu papel. Agora minha, o que dirá? Hoje eu achei uma caneta, mais uma que, muda, ficará na mesa esperando (in)verdades que pulsam feito ferida ardente numa combustão constante entre verdades impostas e sólidas mentiras.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Do caminho

A estrada,
ainda vazia,
chorou.

O homem,
ainda sozinho,
gritou.

E eu,
já perdido,
solucei.

Senti de perto
a ausência da fala.
Caí, chorei, gritei.

O homem
ausente
sumiu.

A estrada
repleta de eus
sorriu.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Dipterícia

Vi que a tempestade estava chegando, de verdade, eu consegui sentir o cheiro dos trovões. Sabe? Aquele cheiro ocre que sobe quando o vento é vazio e, ao mesmo tempo, cheio de uma premonição: é dia de céu desaguar. Mas era noite. O azul profundo tomava conta do céu, da mesma forma que o mar tamborilava o medo de transbordar com tanta água no seu inverso multicolorido. Caí na besteira de abrir a janela, mas só um pouquinho pra transitar entre a vontade de querer ver mais e o receio do que pode entrar pela fresta recém nascida. Parto prematuro esse. Do pequeno fio de nada que se fez entre o vidro sujo pela maresia e a rua úmida entrou uma mosca enorme. Uma mosca. Daquelas de um verde profundo e cintilante. Ela brilhava pra mim, só pra mim com aquele olhar que não se entende de tão geometricamente perfeito: são octógonos dispostos lado a lado num mesmo globo ocular protuso? São prismas? Já me disseram que são vários olhinhos pequeninhos unidos. Sei lá.
Pra mim, tem gente que é mosca. Porque mosca não é um adjetivo, mosca é mosca. É mosca por entrar e ver com olhos profundos nos olhos da gente. É mosca por rondar sem receber a permissão. É mosca por viver apenas em trinta dias o que eu não vivi em uma vida inteira. É mosca por se transformar de larva em um ser que voa por aí livremente. É mosca, apenas. Mas esta que entrou no meu quarto e que, ironicamente, tentou penetrar nos meus vitreamente protegidos olhos não me disse nada além do bzzz habitual. Quis saber a língua das moscas.
Confesso que pensei em pegar aquele produto que mata. Há tanta informação por aí: mosca anda no cocô, caminha pela sua pele, infecciona, apodrece. Mas que apodreça. Aos poucos a gente vai virando pó mesmo. De mansinho a gente vai virando alguma coisa semelhante à mosca; ando, por exemplo, digerindo coisas feito mosca: mastigando, engolindo, vomitando, mastigando, engolindo e vomitando uma porção de coisas para as quais não tenho enzimas ainda. O mesmo quimo de sempre. Pra não ser Kafkaniano demais, dispenso o exoesqueleto. Quero apenas mudar, voar.
Quando me dei conta, a mosca já não estava mais entre o ali e o aqui. Danada, também me causou inveja nisso. A tempestade chegou, a mosca sumiu e eu aqui ainda mastigando.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Do que te fazem.

Mácula fugaz da tua pele intocada.
Sagaz ousadia da fala:
Quem dera, quem dera.
A moça ainda considera:
Meu coração não, meu coração não.
E se fosse? É?
Mas ela é moça nova, sem emoção.
Clama, ainda, ao dizer:
Odeio a vida, odeio a vida.
A vida por si, querida, não é.
Nada? 
Nada.
E nada na direção do eu,
mas que não doa o eco que o ego te faz.
Super, ego, super.

Pré-posição: onde?

A rua gritou:
sou tua!
E não é que acreditei?
Caminhei, dormi, vi e casei.
Hoje sou moço-de.
A propósito, 
essa preposição pode conter a verdade
ou, então,
o sentido de uma perdição
daqueles que fogem;
Mesmo com a saudade,
perdi-me-de
encontrei-me-no.
Proponho:
Olhe. Pense.
A nua tristeza, hoje, beira a felicidade.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Cai, fieira.

No fim, tudo está
parece e comparece
num ciclo viciante
que liga ao ritmo
que risca a gafieira.

Porque na minha canoa é assim:
a fieira só vai.
Não volta por medo de acabar
e trazer no vazio da tarrafa
a fonte para mais um samba triste

Quer saber?
A vida é um choro
tocado pelo defunto maroto
que morreu de tanto sambar.

E na roda de samba da saudade
a voz da viúva faz o fá, o mi e o lá
como um grito de liberdade
de quem tem na felicidade
o alvo dos dias iguais.


domingo, 14 de outubro de 2012

Coisa alguma

Tudo o que eu dissera, agora, já não era mais. Nessa coexistência entre mim e esse eu - aquele, sabe? - o gozo perde. Eu sou a fuga de alguém, a fúria, a chama que clama por um sopro púrpura de sentido. Talvez esse quase olhar que tenho (que beira o soslaio vingativo daqueles que perdem) seja a forma mais sólida de dizer a quem eu chamo: ninguém. Esse não-eu que caminha sem dono pelas ruas tortas afônicas e sinuosamente pálidas é uma sombra rubra da projeção estéril que construímos (quem me garante e gere essa conjugação plurárica?). Sem moldes, modelos ou rascunhos, a ponte que me liga ao mundo não tem voz, não tem força para erguer além dos metros discretos limitados pelos graus miopiamente corrigidos dos meus óculos eternos. 

(Alguém ao fundo ergue a mão num frenesi de corpo e gosto)
 - Qual motivo de tanta adjetivação, moço? 
(Silêncio)

...

Os ouvidos carentes simplesmente impediram a entrada dessas ondas vibrantes, mutantes, insuportavelmente verdadeiras. Aquele mesmo soslaio foi a resposta: motivo algum, querida, motivo algum. Motivo algum. Algum motivo me motiva a crer que não é nada. Já que o não nega o nada, vai ver é, assim, de fato, alguma coisa e coisa, nesse contexto, pode também ser um adjetivo.


segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Claro, ele sabia. Afinal, ele era aquilo tudo. Não que a culpa fosse dele, longe disso, mas ele tinha naqueles dedos roliços gotas de culpa que escorriam digitais temerosas ao longo dos móveis da desajeitada casa de praia. Seus olhos, com toda aquela comoção, foram ganhando um peso incomum, como se, de súbito, sua vida toda fosse para suas pálpebras dançar, dançar e dançar. A música foi tocando e os passos de uma vida partida pesaram ainda mais no seu olhar cansado que, agora, mirava a ausência da sua felicidade num quadro em branco que estava pendurado pelo capricho de um artista à procura de inspiração. E ela veio um dia, talvez. 
Mas o futuro é assim, brinca de ser e estar numa conjugação tão distante que nem se sabe a qual pronome se refere. O futuro é ingrato. O futuro é presente de um pretérito que não deveria ter sido. E o moço, que sentia culpa pela brancura de seu pensamento colado na parede, não queria nada além de um futuro que o trouxesse inspiração; o quadro poderia ficar em branco, até, mas que seus olhos não pesassem mais. E a culpa? A culpa vinha dessa incerteza, dessa fome de algo que ele não tinha enzimas pra digerir, ou direção pra dirigir ao fim.